domingo, 25 de março de 2012

Posição do Canil Aradik sobre o corte de caudas e orelhas

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Ch Ananás de Aradik

Desde que comecei a criar o Barbado da Terceira, tenho sido criticada por vários criadores em Portugal por não cortar as caudas e orelhas dos cães por mim criados.
Porque razão não o faço? Bem, a resposta pode ser dada numa única frase ou ser todo um longo post.

A razão condensada


Não corto caudas e orelhas aos Barbados da Terceira porque acredito que o futuro de qualquer raça passará necessariamente por ser conhecido ao natural, pelo que prefiro começar a trabalhar desde o início para que as pessoas se habituem a este aspecto. 

As várias razões em detalhe 


 1. Evitar a repetição do passado

Comecei a acompanhar a canicultura, por fora, nos anos 1990s – uma época em que não havia a mesma facilidade de difusão de ideias que há hoje em dia, com a internet. No entanto, lembro-me de já na altura ver o pessoal do meio dos Boxers, Dobermanns, Spaniels, etc., discutir a proibição do corte de caudas e orelhas (algo que ocorre ainda hoje!), e a sua preocupação por nunca ter havido selecção para estas características, pelo que não se sabia o que se poderia obter.
Lembro-me também dos comentários, comuns ainda hoje em algumas raças, de que um cão inteiro nem parecia pertencer à sua raça, porque ficava com o seu aspecto “natural” alterado.
Ora, pergunto eu, se o que distingue uma raça de outra são meramente detalhes cosméticos que requerem a amputação de partes do corpo, será que essa raça tem razão para existir enquanto entidade independente?
Daí ter optado por manter inteiros os cães por mim criados. Para que as pessoas se habituem a ver os Barbados da Terceira ao natural, para que não o venham a estranhar mais tarde e se apercebam que, mesmo de cauda e orelhas inteiras, o Barbado da Terceira tem um aspecto diferente de outras raças similares.
Os resultados que os meus cães têm obtido revelam bem que, pelo menos, os cães se parecem suficientemente com Barbados da Terceira para obterem bons resultados e obterem títulos em exposições de beleza.

2. No resto da Europa…

Apesar de em Portugal ainda ser comum verem-se animais de caudas e orelhas cortadas nos diferentes eventos desportivos (incluindo os eventos de morfologia canina, ou exposições de beleza), em cada vez mais países europeus é-lhes vedado o acesso a estes eventos. Ora, qualquer que seja a raça que estejamos a considerar, se queremos permanecer competitivos a nível europeu, temos de poder concorrer no seu terreno de jogo, logo temos de estar preparados para cumprir as suas regras. Isso implica deixar de cortar caudas e orelhas.

3. O estalão da raça

Relativamente à cauda, o estalão do Barbado da Terceira indica:
“Com implantação média a baixa. Em repouso a cauda cai e encurva na parte inferior. Admitem-se anuros.”
Como se vê, é uma descrição bastante genérica, não são referidos, como ocorre noutras raças, detalhes como o comprimento relativo da cauda (se chega ao curvilhão, acima ou abaixo) nem sobre o seu porte em movimento, por exemplo.
O estalão provisório do Barbado da Terceira foi elaborado numa altura em que virtualmente todos os cães tinham a cauda cortada à nascença, tal como acontece ainda hoje com a maioria dos cães, pois esta é a apresentação culturalmente preferida. Aliás, a descrição sobre o porte da cauda em repouso é possivelmente baseada nas caudas de raças similares, pois actualmente os estalões não podem indicar explicitamente que se preferem animais que tenham sido sujeitos a alterações cirúrgicas.
Ora, quando se elaborar o estalão definitivo do Barbado da Terceira, será certamente necessário incluir mais detalhes sobre a cauda e o seu porte. Assim, a minha opção de não cortar as caudas aos cães por mim criados foi tomada (também) de forma a permitir a existência de uma população de animais na qual pudesse ser observada a cauda natural e as suas variações a nível de porte e comprimento, para que se possam tomar decisões informada por ocasião da elaboração do estalão definitivo.

Quanto ao corte das orelhas, a minha decisão de não cortar orelhas aos meus cães foi tomada com base no mesmo princípio que o de não cortar as caudas.
O estalão do Barbado da Terceira, elaborado numa altura em que a maioria dos cães tinha as orelhas cortadas, refere que as orelhas são de
“inserção média a alta, triangulares, de tamanho médio. Pendentes, quebradas e bem revestidas de pêlo. Têm mobilidade de porte e em atenção levantam na base e dobram para a frente.”
Actualmente, já se vêm cada vez mais cães com orelhas inteiras, quer no continente quer mesmo na Terceira, pelo que espero que esta amostra permita avaliar correctamente a variação que existe a nível de porte e inserção de orelhas, de forma a que o estalão reflicta da melhor forma possível a população existente.

Da esquerda para a direita: Multi-Ch Figo, Multi-Ch Sheila & Ch Adágio

4. Bem-estar

Quando tomei a decisão de não cortar caudas, pensava, tal como todos os criadores “sabem”, que as caudas eram cortadas nos primeiros dias de vida porque à nascença o sistema sensorial dos cachorros está pouco desenvolvido, pelo que a sua capacidade em sentir dor estaria muito diminuída – logo, o corte de caudas seria uma operação relativamente indolor, aliás, tanto que é praticada sem anestesia.
No entanto, ao fazer pesquisas para um artigo que estava a preparar, vim a saber que, na realidade, ocorre precisamente o contrário. À nascença, as dendrites dos neurónios dos cachorros não estão ainda completamente mielinizadas (não têm ainda a sua “bainha” protectora completamente desenvolvida). Esta é a razão porque se pensava que a capacidade de sentir dor não estava ainda desenvolvida. Porém, hoje sabe-se que precisamente por isso, o que na realidade ocorre é que não há ainda inibição de certos impulsos, pelo que a dor é efectivamente sentida ainda mais intensamente! E em cachorros com menos de alguns meses de idade nem sequer é seguro usar anestesias em procedimentos cirúrgicos!

5. Comportamento

A cauda é um elemento muito importante na comunicação dos cães com outros cães e com pessoas. Ela contribui para comunicar o estado de espírito do cão, as suas intenções, etc.
Vários estudos têm sugerido que cães com caudas curtas tendem a estar mais envolvidos em altercações agressivas com outros cães, possivelmente como resultado de problemas de comunicação. Um estudo publicado em 2008, o primeiro em condições controladas, usando um modelo robótico de cão em que apenas variava o comprimento e movimento da cauda (comprida a abanar, comprida estática, curta a abanar, curta estática), revelou diferenças na forma como os cães abordavam o modelo, sugerindo que a cauda efectivamente afecta o comportamento dos outros cães.
Assim, pode inferir-se que a ausência da cauda irá colocar o animal numa posição de desvantagem relativamente a cães com cauda e potencialmente aumentar a probabilidade de ocorrência de confrontos agressivos com outros cães.


6. Funcionalidade

A cauda funciona como um “contra-peso” em situações que requeiram agilidade (saltos, curvas em corridas, etc.).
Sempre me espantou como a um cão de pastoreio lhe é cortada a cauda! O trabalho destes cães requer frequentemente curvas, travagens e contra-curvas a velocidades relativamente elevadas, pelo que a cauda necessariamente irá ajudar.
Não quer isto dizer que um cão sem cauda não será capaz de desempenhar a sua função de forma correcta. Afinal, o “coração”, a “vontade” acaba por ser o elemento mais importante para a função do cão. Simplesmente, possivelmente o trabalho poderia tornar-se mais fácil com a cauda inteira a auxiliar.

7. Saúde

Em algumas raças, o corte de caudas é justificado com o argumento que é feito para evitar que sofra danos na passar no mato ou a bater em objectos. Dado que no Barbado da Terceira nunca ouvi argumentos a favor do corte da cauda relativos a questões de saúde, vou abster-me de os comentar aqui e agora.

Quanto ao corte de orelhas, a situação é diferente. Em quase todas as raças em que as orelhas são cortadas é comum invocar-se o argumento que os cães com orelhas pendentes estão mais propenso a otites.
Existem poucos estudos comparando a ocorrência de otites em cães de orelhas pendentes e de orelhas erectas. Parece efectivamente haver uma pequena maior incidência de otites no primeiro caso, mas os estudos tipicamente ou não especificam o tipo de orelhas pendentes (há muita variedade) ou baseiam-se em dados de Cocker Spaniels – que, com orelhas pesadas, compridas, bastante pendentes, são muito diferentes dos Barbados da Terceira, cujas orelhas são mais curtas e móveis, permitindo um melhor arejamento do canal auditivo.
Aliás, é interessante constatar que todas as raças de cães de água e retrievers (raças que, pela função, seriam a priori mais propensas a otites) têm as orelhas pendentes. Se a ocorrência de problemas a nível do canal auditivo fosse séria, certamente que já teriam sido selecionados cães de orelhas erectas…

O meu Barbado da Terceira

 

Ch Adágio
Lembro-me como se fosse hoje quando vi o meu primeiro Barbado da Terceira ao vivo – o Xico, de Teresa Pamplona, há muitos anos atrás quando fui à Terceira no âmbito do meu trabalho de mestrado. Apaixonei-me de imediato pela raça em geral e por aquele cão em particular. Voltei a vê-lo alguns anos mais tarde, já mais desenvolvido, e a paixão voltou a surgir, mais forte. Era um cão fantástico, cinzento encoleirado, com orelhas e cauda cortadas dando-lhe um ar de facto ainda mais compacto e imponente!
Sim, efectivamente, ao contrário do que muitos pensam, gosto muito de ver o Barbado da Terceira com orelhas e cauda cortadas! Aliás, e contra os meus princípios, o meu primeiro Barbado, Ch Adágio (da mesma linha do Xico), teve as suas orelhas cortadas quando estava já comigo; foi o único cão a quem o fiz.
Além de ser o corte ser tradição na ilha de origem da raça, o aspecto fica completamente diferente e bastante apelativo.
Mas deveremos continuar agarrados ao passado em nome da “tradição”?
As orelhas também eram tradicionalmente cortadas, e hoje em dia já são cada vez mais os cães, mesmo na sua ilha natal, a serem mantidos com as orelhas inteiras. Deixar de cortar caudas é apenas o próximo passo lógico (e, a meu ver, inevitável).

Desvantagens em manter os cães inteiros

Ch Cortiça de Aradik

Optar por não cortar caudas e orelhas tem os seus riscos. Como o aspecto fica diferente daquele a que as pessoas estão habituadas, um cão tem de ser superior aos restantes para ter o mesmo sucesso.
Um cão de orelhas cortadas de imediato aparenta ter uma cabeça mais larga, uma vantagem num cão que se deseja que seja compacto e robusto.
Por sua vez, um cão de cauda inteira vai imediatamente parecer mais comprido, não só em movimento (com a cauda no prolongamento do corpo), mas também quando está parado, devido ao volume do seu pelo. Se adicionalmente o cão tiver branco nos membros (como pessoalmente gosto), ainda vai parecer mais comprido, por a ilusão da diferença de cor nas patas “quebrar” a altura do cão. A menos que o juiz seja capaz de ultrapassar as ilusões de óptica, o cão será frequentemente penalizado.

Portando… será que há actualmente desvantagens em apresentar em exposições cães de cauda inteira (porque de orelhas inteiras felizmente são cada vez mais)? Sim, há! Mas há que começar a trabalhar e a investir hoje a pensar no amanhã!

No fundo…


Será que é frequente ouvir que um cão tem de ter a cauda (e orelhas) cortadas para ser um Barbado da Terceira? Sim! No entanto, não é isso que define a pertença a uma raça ou sequer a qualidade do cão. Há bons e maus cães de cauda e orelhas cortadas, há bons e maus cães de cauda e orelhas inteiras.
Acredito que o “choque cultural” do aspecto diferente com o cão inteiro será muito menor se, desde o início, as pessoas se habituarem a ver as duas “versões” da raça e começarem a “treinar” o olho para o que (acredito que) vai ser o futuro.

Tem sido este o princípio por que me tenho regido no Canil Aradik!

Carla Cruz
www.aradik.net

P.S. – Naturalmente, o facto de ter optado por manter os cães de minha criação inteiros não obriga a que os outros criadores o façam, como alguns parecem temer, dada a veemência com que protestam. Cada um deve actuar de acordo com a sua consciência e os seus princípios, e não com base no que os outros fazem! Existem locais próprios para avaliar os méritos ou deméritos das decisões tomadas.


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3 comentários:

  1. Bom trabalho. Estou de acordo com o não corte de orelhas e cauda. Não há razão lógica para o fazer. Mas para mim os cães não são só morfologia, são muito mais que isso como o seu carácter e capacidades de trabalho. E aí os concursos de beleza e os clubes de canicultura falham redondamente. Não quero uma linha de barbado de trabalho e outra de beleza como no pastor alemão. Nenhum cão de trabalho deveria ser premiado campeão sem demonstrar as excelentes capacidades atléticas e mentais com provas de trabalho multi curriculares. Como exemplo para o barbado, Pastoreio, agility, guarda, pista, obediência. Pena não haver uma disciplina que agregue todas estas. Mondioring, french ring, ou schutzhund. São com caris demasiado agressivo. Pergunta vocês na aradik fazem algo mais do que beleza? Gosto dos vossos cães mas quero um cão para fazer obediência, agility e pistagem. Muito obrigado e Bem hajam.

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